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Serra Grande

A complementaridade na pesca artesanal

 Mapa -  Limites territoriais Serra Grande

Serra Grande é um distrito do município de Uruçuca localizado na zona cacaueira da Bahia, ao sudeste do estado, possuindo aproximadamente 6.700 habitantes (TABOA, 2023). O distrito que triplicou sua densidade demográfica nos últimos 20 anos (SILVERA, 2020), tem recebido grande onda migratória, desde a construção da BA-001, estrada que atravessa a vila e liga o aeroporto de Ilhéus aos destinos turísticos de Itacaré e Maraú. Localizado dentro da àrea de Proteção Ambiental Itacaré-Serra Grande e cercado pelo Oceano Atlântico a Leste, Parque Estadual da Serra do Conduru a Oeste e Área de Proteção Ambiental Lagoa Encantada a Sul, o distrito vem se colocando como reduto ambiental e paraíso ecológico tanto como destino turístico, como nova moradia. Esse reduto foi em 1992, foi reconhecido pelo New York Times como recorde de biodiversidade da Mata Atlântica do Planeta.

Pode-se imaginar como o interesse por terrenos nesse paraíso ecológico tem crescido, assim como os grandes empreendimentos turísticos, que oferecem uma “imersão” na natureza intocada da região.Porém, essa natureza, não foi sempre intocada. Antes da chegada da BA-001, dos ambientalistas, turistas e novos moradores, essa era uma pequena vila de pescadores, com um estilo de vida bastante extrativista, voltado para economia de subsistência, em que as famílias viviam principalmente da pesca e da agricultura familiar.

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Mapa - Unidades de conservação

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Prainha

A região de Serra Grande, não é diferente de outras pequenas comunidades do interior da Bahia, que culturalmente estão embasadas em um senso de coletividade, o qual viabiliza a sobrevivência dessas comunidades, apesar das adversidades, especialmente econômicas em que viveram e ainda vivem. Famílias nucleares, vivendo em regime de complementaridade, propiciam a sobrevivência e manutenção dessas populações. Assim, homens e mulheres trabalham juntos na pesca e agricultura para viabilizarem sua existência. A vila, que era composta por poucas famílias extensas, extraía madeira para construir casas e cozinhar, caçavam animais, e construíam suas jangadas com o pau de jangada, para a pesca artesanal praticada no mar aberto. Atualmente a principal região de onde extraiam tais matérias primas está restrita devida a delimitação do Parque Estadual da Serra do Conduru com restrições de uso e ocupação do solo, além das crescentes proibições ambientais sobre pesca, caça e extração de determinadas espécies devido a risco de extinção, que impuseram novos limites na interação deles com a “natureza”. Somado a isso, com a chegada do turismo e da especulação imobiliária, essas famílias perderam suas moradias na faixa costeira, onde viviam um estilo de vida pesqueiro, e agora habitam regiões de conglomerados de casas populares em outras áreas da vila, afastadas do mar, e em geral sem possibilidades de pesca e agricultura intensas como viviam anteriormente.

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Restos de jangada abandonada

Em geral, os lugares onde viveram suas infâncias e juventude, hoje estão cercados e são propriedades de grandes empresários. Alguns destes empresários ainda permitem a passagem para a pesca e colheita de frutas como cocos e manga, outros não.Um grande empresário é proprietário de uma grande parcela de uma das margens do rio Tijuípe até quando este desemboca no mar. Lá, existe um grande manguezal, em que muitos moradores nativos, cresceram, e aprenderam a pescar. As mulheres, devido ao estilo de pesca continental e mariscagem, tradicionalmente pescavam de varinha e mariscavam aratus, caranguejos e siris, por ali. Atualmente elas possuem autorização para passagem dentro do terreno do empresário para a pesca, porém, enfrentam desafios como constrangimentos e preconceitos dos vigilantes e deslocamento difícil, já que o acesso ao caminho por carros só é permitido a algumas pessoas.Já na outra margem do rio Tijuípe, uma Fazenda de hospedagem turística, não permite acessar o mangue, pois a passagem está proibida para todos, e muitos conflitos entre pescadores e proprietários têm ocorrido.

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Portaria com cancela para acesso à Foz do Rio Tijuípe

No mangue do Rio Sargi, a ocupação de terrenos às margens do rio, acabaram com a pesca no manguezal, que encontra-se poluído devido ao despejo de esgoto das casas e inacessível para as pescadoras como Dona Maria, que sempre mariscaram por ali, por agora serem áreas privadas.

Mangue Rio Sargi

Há alguns anos atrás na praia do Sargi, era possível comprar peixe fresco quase todos os dias, por volta das 16 horas. Era como um evento turístico, ver os jangadeiros chegarem com as jangadas, e negociar os peixes recém pescados ao longo do dia. Eles costumavam sair em duplas, na jangada feita com pau de jangada (Apeiba Tibourbou). Conforme me relataram, era o meio de transporte mais seguro, e mais barato, já que não envolve custos de gasolina, os quais atualmente são necessários em outras embarcações. O pau de jangada é a madeira ideal para a feitura da embarcação, já que leve, de fácil manuseio e de grande estabilidade, a técnica foi tradicionalmente exercida em toda a costa Nordeste do país. Entre 5 e 8 da manhã, conforme a maré, saíam em duplas, arrastavam as jangadas estacionadas na areia, e as faziam rolar até o mar em cima de dois rolos plásticos bem firmes que iam recolocando a frente do  caminho na medida que empurravam a jangada até o mar. Lá subiam e com duas varas longas, empurravam o fundo do mar, embalando a jangada contra as ondas. Ao atravessarem a região de “quebra”, substituíam as varas por remos, e remavam até aproximadamente 23 km da costa, onde passavam o dia pescando. Lá se alimentavam de pirão feito com farinha dendê e algum dos peixes pescados. Sem nenhuma cobertura, ficavam expostos ao sol e ao vento durante todo dia e retornavam por volta das 16 horas, quando moradores os aguardavam na costa para comprar os peixes frescos.

Jangada

Porém, nos últimos anos, a pesca de jangada está por se extinguir. A utilização do pau de jangada, para  a feitura das jangadas foi proibida pelo INEMA, levando inclusive à prisão de alguns pescadores que tentavam manter seus meios de vida. Além disso, o crescimento de condomínios à beira mar que criam dificuldades e empecilhos para a passagem dos pescadores, e para o armazenamento das jangadas e o trânsito de suas motos em que carregam rede, facão, água, peixes, estão empurrando os pescadores cada vai para mais longe do Pé de Serra, de onde saíam originalmente. Careca, pescador ativo da Vila, me disse que já não vale mais a pena pescar, pois o que se pega em um jangada não é suficiente para gerar a renda necessária. Os peixes estão cada vez mais escassos devido às grandes redes colocadas em mar aberto por barcos da pesca industrial. Além disso, o baixo preço dos peixes vendidos pela grande indústria pesqueira desvalorizam a pesca artesanal na região. Recentemente, uma dupla de jovens, está tentando sair de jangada novamente, mas enfrentam dificuldades e precisam sair da Ponta do Ramo a aproximadamente 20 km do seu lugar original (Pé de serra), pois é o lugar ainda possível de acessar a praia e parar sua jangada junto aos barcos à diesel dos outros pescadores.

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A última jangada

A construção civil também tem deslocado os pescadores de sua vida de pesca. Tanto pela construção de residências, hotéis e pousadas que aumentou muito nos últimos anos na região, quanto pela chegada do Porto Sul, empreendimento portuário que está sendo construído há 20km da Vila, os pescadores têm buscado postos de trabalho mais constantes financeiramente. Assim como as mulheres, que têm buscado por trabalhos diversos no setor de serviços: faxineiras, cozinheiras e ajudantes em casas de outras famílias, e já não possuem tempo para pescar.

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Ponta do Ramo

É importante destacar que a pesca artesanal, não se trata apenas de uma questão econômica no sentido de subsistência. A garantia econômica pode ser conquistada por outros meios, serviços como faxina ou construção civil, mas ainda assim, pesca-se como expressão sociocultural que envolve o alimento, e como prática de um fazer que compõem uma identidade de pescador /marisqueira. A pesca pode alimentar direta ou indiretamente não só o corpo. O peixe representa uma forma de se alimentar tradicional que é mantida pelo valor afetivo que possui. No passado o peixe representava segurança alimentar das famílias na região, atualmente não se trata disso, ao mesmo tempo que não deixa de ser. Como mencionou Careca: 

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“Um jovem que aprende a pescar pode estar ali contribuindo para trazer um alimento para casa.”

Peixe no fogão a lenha

As mulheres são cozinheiras, faxineiras, além de mães, avós, donas de casa, e a pesca é como um pano de fundo para essas múltiplas funções que atravessam suas vidas. O cuidado da casa, dos filhos e netos, inviabiliza a liberdade para pescar. Elas vão quando podem em duplo sentido: Elas precisam ter disponibilidade com relação aos filhos e parentes, e precisam ter segurança financeira, seja pela aposentadoria, ou por algum outro trabalho que lhes ofereça “segurança financeira”. Os mariscos e peixes pescados por elas complementam a alimentação e se em grande quantidade geram um renda extra.Assim, quando se aposentam como pescadoras, é quando elas de fato poderão dedicar-se exclusivamente à pesca. Com filhos e netos já criados, elas podem finalmente ter a segurança financeira com a aposentaria, para viverem seu modo de vida “original”, como foi em sua infância com suas mães e avós, em outros tempos. Esse é o caso de Dona Nane, que foi durante 12 anos presidente da Associação de pescadores e marisqueiras da Vila, mas só pôde se colonizar para aposentar-se.

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Claudia pescando

Nesse sentido, o status feminino das pescadoras, está submetido à uma série de outros fatores ao longo da vida familiar, que acabam por invisibilizar  a participação dessas mulheres nesse universo, que em Serra Grande é visto como majoritariamente masculino.Desde que comecei minha pesquisa, muitos homens, pescadores, me afirmaram que já não haviam mais mulheres pescadoras na Vila, aos poucos fui conseguindo descobrir algumas delas, ouvindo sobre outras, que reprimidas pelo machismo não queriam falar, se expor, e ainda aquelas que não se consideram pescadoras, e se auto intitulam mulheres/ajudantes de pescador.Ajudam-no na limpeza dos pescados e na comercialização, algumas pescam também, mas não se afirmam pescadoras, especialmente as mais jovens.

Beneficiamento do Peixe

Em Serra Grande existem dois tipos de pesca feminina principais: a pesca de mariscos, como Caranguejos, Guaiamuns, Aratus e Siris, e a pesca de varinha para peixes pequenos como a Carapeba ou  Oriocó. A pesca de mangue acontece atualmente principalmente na foz do Rio Tijuípe, que apesar dos constrangimentos das cancelas e vigias até a Foz, ainda é possível mariscar por lá, e até mesmo manter pequenos barracos para a pesca acampada de vários dias, como faz Dona Paula. A mariscagem na Barra do Rio Sargi já não é tão comum, ainda existem famílias que o fazem, porém, a proibição da pesca do Guaiamum, espécie decretada em extinção pelo INEMA e com a intensa ocupação mobiliária das margens do rio, Dona Maria que cresceu mariscando por ali, já não vai mais.

Guaiamum

A pesca de vara pode acontecer nas pedras, que estão em toda a costa litorânea entre um rio e outro que delimitam o território da vila Rio Sargi e Rio Tijuípe), e permitem a pesca de peixes pequenos como a Carapeba e Cioba,  mas também de peixes maiores como o Pampo, que Claudia afirma ser suas especialidade.Além disso, a participação feminina é intensa também no beneficiamento dos peixes maiores pescados no mar pelos homens de suas famílias, como é o caso de Risiane e Dona Maria, que não se dizem pescadoras, mas têm participação fundamental na construção de valor e comercialização dos peixes pescados pelos homens da família.

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Risi limpando o peixe

Poucas mulheres, majoritariamente idosas, resistem na manutenção dos modos de vida pesqueiro em Serra Grande, mas em muitos casos, já não possuem saúde para exercê-los, e já não repassam seus saberes às novas gerações, que não se interessam, e buscam outras possibilidades de vida. Dona Nane, já não pesca mais, com quase 78 anos, seu corpo não permite ir até as pedras ou mangue onde cresceu e pescou toda a vida, mas ainda assim, sua participação política na pesca da Vila, tem sido de grande importância na luta pelos direitos dessas populações, na manutenção de seus modos de vida e na preservação de seus saberes tradicionais. Porém, as novas gerações femininas da Vila buscam novas possibilidades de trabalho, e já não apresentam vínculos simbólicos com a pesca, com o beneficiamento e com a cultura alimentar pesqueira.

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Dona Paula
Dona Maria
Dona Nane
Claudia
Risi
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