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Dona Maria

O abandono do estado na pesca feminina

Antes de conhecer Dona Maria, ouvi muitas vezes seu filho Careca, me falar  sobre ela. Curiosamente, quando a conheci pessoalmente, também foi através de seu marido que ouvi sua história.Extremamente tímida, Dona Maria não é de falar, mas ela sorri e concorda na medida em que seu marido, Seu Valdelicio, conta sobre a história de sua esposa, que é também, em grande parte, a história da família.Seu Valdelicio aprendeu a pescar sozinho, quando chegou à região. Aprendeu a jogar tarrafa para pegar tainha na praia e na boca do rio, pegava Robalo, Guaiúba e muita Tainha. Mas sua profissão era motorista, trabalhou muitos anos na linha do Rota (viação de transporte coletivo local), e de motorista das fazendas do entorno da vila de Serra Grande.

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Sentados no final da tarde, em um banquinho de madeira na frente da casa da família, observávamos os carros que passavam rápido na BA-001 que passa a menos de 20 metros de sua casa.A estrada BA-001,  hoje de asfalto, atravessa a vida da família, desde quando Seu Val chegou à Serra Grande, há mais de 40 anos atrás. Dirigia por ela todos os dias, primeiro em uma estrada de terra, e a partir da década de 2000, na estrada asfaltada pelo Programa de Desenvolvimento do Turismo do Nordeste (PRODETUR).Motorista, primeiro dos caminhões das madeireiras e fazendas e depois do ônibus de transporte coletivo. Seu Valdelício afirma que foi com a estrada que criou a família. E foi através dela, que chegou a Serra Grande e conheceu Dona Maria, filha de Serra Grande, que vivia, às margens do Rio Sargi, com sua família de pescadores e marisqueiras.

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Dona Maria, de 63 anos, permanecia silenciosa e sorridente sentada ao meu lado enquanto seu Val me contava essa história. Não dizia muito, mas me contou que nasceu na Ponta do Ramo, onde seus pais tinham uma fazenda no mangue, onde ela aprendeu desde pequena a mariscar, Siri, Aratu, e Camarão, como me contou ela, apesar de toda timidez:

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“Pegava era muito camarão de mão. Enfiava as mãos na loca, e saia cheia de camarão.”

Desenho 06 -Camarão_edited.jpg

Camarão

Seu Val conta que Dona Maria ia com as primas mariscar, sua mãe também mariscava, mas era ela quem pegava mais. Ela afirma que sente saudades daquele tempo, mas que hoje em dia é tudo diferente, além de não poder ir mariscar devido às suas condições de saúde, mesmo se pudesse: “Não existe mais mangue como antigamente”. Depois de casada, Dona Maria se mudou para a casa em que vive hoje com Seu Valdelício e os filhos, às margens da BA-001, e continuou a mariscar. Porém, agora, em outra parte do mesmo Rio Sargi, que passava ao fundo da nova casa.

Mangue do Rio Sargi

A região tem sido intensamente ocupada, desde a construção da BA-001, as áreas às margens do Rio Sargi foram extensamente vendidas, e já não há mais espaços e caminhos para mariscar. Além disso, com a crescente especulação imobiliária na região, as famílias nativas têm sido, cada vez mais, empurradas para longe das margens dos rios e faixas litorâneas, e encontram-se, cada vez mais, distantes de seus lugares de infância e de seus modos de vida tradicionais.No caso de Dona Maria, ela ainda vive entre o Rio e mar, mas a estrada também atravessa seu terreno, e os mariscos já não habitam mais aquele mangue. Como por exemplo o camarão, que no passado era sinônimo de fartura, e hoje em dia, como conta Dona Maria: “Já não acha mais.”

Dona Paula - Pescadora/ Caminhando no mangue

Dona Maria chegou a ser “colonizada”, mas, como conta Seu Valdelício, com “o pente fino da era Temer”, Dona Maria perdeu seu Registro Geral da Pesca (RGP), e hoje, com 63 anos, incapacitada fisicamente, luta para conseguir se aposentar como pescadora. Em 2001, um ano após a inauguração da BA-001, um carro perdeu o controle na estrada e foi parar dentro da casa de Dona Maria, onde ela dormia com seus 2 filhos. O acidente gerou lesões irreversíveis à saúde de Dona Maria, que desde então não pode mais ir ao mangue mariscar. Como seu Valdelício faz questão de dizer, na época do Lula, Dona Maria chegou a receber o auxílio do INSS pelo acidente, mas depois, os presidentes foram mudando e ela perdeu seus direitos.A fragilidade dos direitos conquistados pelas pescadoras e marisqueiras, é claramente ressaltada na fala de Seu Val. Os direitos no Brasil, estão fortemente submetidos às condições políticas, o que submete os grupos minoritários a uma constante instabilidade na garantia de seus direitos e manutenção de seus modos de vida.

Siripóia

A pesca de Dona Maria não tinha como objetivo a comercialização. Os mariscos e peixes pescados eram para a alimentação da família. Foi Careca, que tornou a pesca uma forma de renda familiar. Como me disse Seu Valdelício, apesar de pescar durante toda a vida, para comer e oferecer peixes a seus filhos, esse não era seu ofício, e ele não desejava isso para seus filhos. 

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“Pois a vida de quem depende da pesca é muito dura.”

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Mas Careca escolheu ser pescador, “pescador de verdade” como afirma Seu Valdelício:“Careca é pescador mesmo, que vai pro mar e não enjoa." É curioso, como a validação da pesca está diretamente associada ao mar aberto, para ser um pescador legítimo, precisa-se ir ao mar aberto. E assim, Dona Maria e todas as outras mulheres que não embarcam, muitas vezes não são reconhecidas como pescadoras legítimas, mesmo que tenham vivido toda uma vida de pesca.

Careca - Pescador / Sobre Dona Maria marisqueira

A mulher na pesca, possui participação fundamental para a manutenção do modo de vida pesqueiro, e para agregar valor ao produto enquanto bem de comercialização. Porém, a sua atuação não é caracterizada como atividade econômica no caso do beneficiamento dos pescados dos homens da família, e nem como contribuição significativa para o sustento alimentar desta família. Dona Maria, é quem sempre preparou moquecas, peixes fritos, e assados que alimentaram a memória gustativa e o afeto pela pesca desses homens, mesmo que ela própria não goste de comer peixe, como me confessou, é ela quem garante o prazer do vínculo alimentar.

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É ela também a responsável por limpar e beneficiar todos os peixes e mariscos pescados tanto pelo pai, quanto pelo filho. Careca me garante que ela gosta tanto, que não deixa ninguém pegar no peixe, quando ele chega em casa da pescaria:

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“Minha mãe que limpa, ela adora! (...) É algo que ela tem desde a época do meu pai.”

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A problematização do lugar da mulher dentro da cadeia produtiva da pesca, coloca importante questão do lugar social não produtivo, historicamente caracterizado pela determinação do espaço da mulher dentro do cuidado doméstico e familiar. Essa oposição complementar entre homem pescador que sai ao mar e mulher que fica na terra, cuidando da casa e da família, não é uma oposição simétrica, já que a valoração da aventura para a saída ao mar, versus a pescaria em terra, dentro do tempo possível que resta após os afazeres domésticos possuem rentabilidades distintas.Assim como, a relegação do beneficiamento às mulheres, atividade vinculada à sujeira e desprestígio, hierarquizam as relações de poder e prestígio dentro da complementaridade familiar pesqueira.

Foto 75 - Tainhas na rede.JPG

Tainhas na rede

Atualmente Careca pesca principalmente de corrico, uma espécie de linha que  vai puxando iscas artificiais com varinhas e pesca sub arpão utilizando de uma técnica de contenção do ar chamada apnéia . Como ele conta, ele desejava continuar vivendo na vila, com sua família e então compreendeu que precisaria aprimorar as técnicas para se manter pescador. Mas ainda joga tarrafa no inverno para pegar a tainha, que é uma das técnicas tradicionais da região e que aprendeu com seu pai quando criança.Todo o peixe pescado por Careca é beneficiado por Dona Maria, que não recebe remuneração monetária pelo trabalho, o faz por amor, como afirmam Careca e Seu Valdelicio. Os peixes são comercializados em uma pequena peixaria própria, também no terreno da família à beira da estrada BA-001, em que vendem para turistas e outros moradores.

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Mas Careca afirma que não vive da pesca, assim como seu pai, a pesca complementa a renda, a alimentação familiar, e alimenta a identidade do pescador.

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“Eu não vivo da pesca, mas eu amo pescar, eu amo tá no mar. Eu amo ver meu pai feliz, a satisfação no olhar de quando chega com o peixe, que foi algo que ele me ensinou. Hoje ele não pode pescar, mas ele não deixa de comer o peixe, eu sei e é vivo que ele me ensinou, eu quero passar pro meu filho, no tempo certo, se ele tiver interesse(...) mais por manter essa chama viva, da cultura da essência, sempre respeitando a natureza, o lugar.”

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Porém, entre as mulheres, os fazeres femininos pesqueiros, como a mariscagem e o beneficiamento não estão sendo transmitidos às gerações mais jovens. Dona Maria sempre limpou os peixes de seu marido, e agora limpa os do filho. A esposa de Careca, não sabe limpar peixes e não se interessa em aprender. Como me afirmou Careca, as mulheres estão interessadas em outras coisas, como trabalhos remunerados. As relações de complementaridade entre os casais mais jovens, não se dão nos moldes de antigamente, em que o homem saia para a pesca, e a mulher cuidava da casa, dos filhos e beneficiava os pescados. Agora as mulheres querem ganhar seu próprio dinheiro, e a relação de complementaridade já não funciona como antes.

Careca - Pescador /Sobre as mulheres na pesca

Como afirma Careca, as poucas marisqueiras que existem estão velhinhas, e provavelmente a mariscagem de fato acabará em breve na região. Como me disse uma vez, a dedicação exclusiva do vínculo empregatício associada ao Registro Geral da Pesca, exclui as diversidades da própria categoria. Como ele me afirmou:

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“Eu não vivo da pesca, então eu não preciso receber defeso, mas eu queria ter o meu Registro, ser reconhecido como pescador.”

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A fala de Careca, caracteriza um regime legislativo superficial, que percebe a pesca estritamente como atividade econômica, e acaba por muitas vezes, não dar conta de considerar tantas diversidades, e acolher as diferenças que existem no exercício da pesca, ainda mais no caso de pescadoras e marisqueiras.

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