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Dona Nane

Associativismo e a burocratização na luta dos pescadores

“Hoje em dia se cria filho com leite né? Mas eu quando nasci, meu primeiro alimento foi caldo de puã de siri. Mainha depois que me pariu, foi lá na Barra, pegou o siri, cozinhou, fez o caldo e me deu…é por isso que eu gosto tanto de peixe.”

Siri

Dona Nane possui 78 anos, orgulhosa de sua história, conta que pesca desde os 10 anos de idade com sua família na Barra do Tijuípe. Filha de Serra Grande, Dona Nane faz parte da primeira geração de nascidos na pequena vila. Ali sempre viveu entre a agricultura de subsistência e a pesca artesanal praticada por seus pais e parentes e afirma que o pescado (peixe/marisco) tem grande  centralidade em sua existência.Quando conheci Dona Nane já havia ouvido muitas histórias sobre sua atuação como presidente da Associação de pescadores e marisqueiras de Serra Grande. Durante 12 anos, Dona Nane esteve à frente da associação, e muitos pescadores ressaltam sua contribuição na garantia de seu modo de vida pesqueiro na vila.

Frequentemente Dona Nane é mencionada quando surge o assunto da cancela, que imposta pelos novos proprietários dos terrenos às margens da Foz do Rio Tijuípe passaram a impedir a tradicional passagem dos pescadores por ali. Dona Nane é citada como a responsável pela liberação da passagem dos pescadores pela cancela. Como conta Dona Paula:

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“Dona Nane não deixou não, foi lá, brigou com todo mundo, até deixar nós entrar.”

Dona Nane

Propriedade particular que atravessa a estrada de acesso ao mangue.

Como me contou Dona Nane, quando já estava na idade de aposentar, seu Badu, antigo presidente da associação de pescadores e marisqueiras da Vila de Serra Grande, lhe informou que ela tinha direito a aposentar-se como pescadora, já que havia vivido a vida inteira da pesca. Ele, como presidente da Associação na época, lhe ajudou a fazer a documentação para conseguir seu RGP (Registro Geral da Pesca) e assim poder se aposentar como pescadora. O RGP, é o cadastro do governo para brasileiro para a regulamentação da pesca como atividade econômica, que ao mesmo tempo regulamenta a prática pesqueira e garante direitos trabalhistas como o seguro defeso (períodos remunerados de proibição de pesca de determinadas espécies para garantir sua reprodução e preservação) e a aposentadoria. Porém, os processos burocráticos para a aquisição do registro, o impedimento de outros vínculos empregatícios e a contribuição financeira mensal para sua manutenção, muitas vezes inviabilizam a prática legalizada. Especialmente no caso das mulheres, que muitas vezes pescam como forma de complementar a alimentação familiar e a renda, mas desempenham outras atividades econômicas para o sustento familiar.

Dona Nane na varanda

Ao longo da vida, como me contou, Dona Nane fez muitas coisas para conseguir criar os filhos. Nascida e criada em Serra Grande, Dona Nane acompanhou todas as transformações da pequena vila de pescadores, vivenciou a venda da terra onde vivia, e sofreu a mudança para longe da costa, onde teve que se adaptar ao novo estilo de vida. Criou filhos e netos, cuidou do marido, dos parentes, trabalhou de faxineira, de cozinheira, mas sempre pescava quando podia.

Pescadora / Pescando no mar

Com a aposentadoria, ela teve mais tempo para se dedicar a Associação de pescadores e marisqueiras de Serra Grande, e começou a trabalhar para a associação, porque queria defender os pescadores. Começou como tesoureira.  Como ela conta orgulhosa, gostaram tanto de seu apoio que a elegeram presidente da associação por 4 mandatos seguidos. Ela esteve no cargo por 13 anos, e nesses treze anos, ela garante que “colonizou” muitos pescadores, ajudou muita gente a fazer a carteira e era conhecida como a mãe dos pescadores porque lutava por eles e por seus direitos. Naquele tempo Dona Nane fazia festas de natal para os pescadores, quando recolhia e distribuía cestas básicas para as famílias mais carentes. Este era um momento de muita alegria e comunhão para a comunidade. Ela conta que durante seu mandato chegaram a fazer até mesmo um campeonato de pesca na Barra do Tijuípe e que foi um grande momento para os pescadores estarem juntos e celebrarem:

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“Tinha um bocado de mesas cheias de fruta e aquele monte de peixe.”

Foto 63 -Tijuípe.jpeg

Tijuípe

Porém, já idosa e cansada, Dona Nane decidiu deixar o cargo, mas sente falta da época em que estava na luta pelos pescadores, e lamenta que exista hoje tantos pescadores, e especialmente pescadoras, perdendo suas carteiras e seus direitos.A importância da coletividade, da sensação de pertencimento a um grupo, não só institucionalmente, mas culturalmente fortalece este grupo e sua identidade, momentos de celebração coletivas estimulam e valorizam a comunhão e coesão deste grupo que se fortalece e se empodera. Porém, quando essa coletividade está regida por processos administrativos estatais, em geral ela impõem questões burocráticas que escapam aos conhecimentos destes grupos.Quando deixou o cargo, Dona Nane estava completamente endividada. A desinformação das obrigações tributárias legais as quais deveria cumprir durante seu mandato, não eram de seu conhecimento. Como ela mesma relata, ela assumiu o cargo para ajudar os pescadores e marisqueiras, mas ela não sabia dos documentos e dos impostos que tinha que pagar.

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“Quando fui ver, tinha um monte de dívida lá no meu nome, porque eu era presidente da associação, igual aconteceu com Badu.”

Barra do Tijuípe

A história de Dona Nane se repete entre os presidentes da Associação, em geral pescadores e marisqueiras, muitas vezes analfabetos ou semi analfabetos, assumem o cargo, pelo espírito de luta, porém, não conhecem a legislação e não recebem apoio institucional para lidar com as questões burocráticas. A desinformação, no que se refere a processos burocráticos e tributos, é frequente entre os pescadores. E causa frequentemente perdas de registros de pescadores (RGP) e revolta entre eles, que confusos, sentem-se enganados, explorados e acabam muitas vezes por afastarem-se dos registros oficiais para não correrem riscos de se atrapalharem legalmente. Inclusive, quando lhe perguntei sobre a diferença entre pescadora e marisqueira, Dona Nane me explicou que a mulher, para conseguir a carteira (RGP) tem que falar que é marisqueira, pois para eles (o Estado) homem é pescador, e mulher é marisqueira.

A fala de Dona Nane retrata como a mistura entre desinformação dos seus direitos, com o desconhecimento estatal das especificidades da pesca, especialmente feminina no Brasil, formulam situações que acabam por invisibilizar a diversidade da pesca feminina no Brasil.Dona Nane, disse que mariscou muito, mas que o que ela mais gostava era de pescar nas pedras com caniço, e que alimentou todos seus filhos e netos com os peixes pescados nas pedras. A sua fala traduz seu desejo de se reconhecer como pescadora, mas com as imposições administrativas estatais, é mais seguro afirmar-se como marisqueira.

Foto 65 - Pescando nas pedras.JPG

Pescando nas pedras

A diversidade da pescaria, assim como os distintos períodos para cada tipo de pesca refletem um conhecimento amplo e complexo sobre os ciclos da natureza, os quais essas populações acumulam e transmitem oralmente. A riqueza dessa diversidade deveria ser valorizada  e não reduzida a uma categoria institucional determinada apenas pelo gênero. Ser marisqueira não é só ser mulher na pesca, e nem só pegar mariscos, para além da expressão, ser marisqueira é alimentar-se toda a vida de pescados variados, assim como alimentar seus filhos, netos e vizinhos, em relações de profunda solidariedade. É pescar por amor ao fazer, e não com fins estritamente produtivos. É lutar pelos direitos dos seus, mesmo que para tanto enfrentem limitações desleais, como a burocracia impossível para os iletrados. É conhecer os ciclos da natureza e respeitá-los, vivendo junto à natureza. E por isso, essas populações necessitam de seus ambientes para extrair suas bases alimentares, culturais e sociais.

Foto 66 - O Barraco no Tijuípe.JPG

O Barraco no Tijuípe

Dona Paula
Dona Maria
Dona Nane
Claudia
Risi
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