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Claudia

Reconhecimento e gentrificação na pesca artesanal feminina

Dona Nane, antiga presidente da Associação de pescadores e marisqueiras de Serra Grande, foi quem me contou sobre Claudia.Me garantiu que se trata da melhor pescadora da região: “Não tem quem se vire na ponta do anzol dela. Ali é braba viu?! Eu fico com dó, porque ela sim é pescadora mesmo, e das melhores, e perdeu a carteira por maracutaia deles ai.”  Claudia se diz marisqueira, mas gosta mesmo é de pegar peixe de linha: Pampo, Traíra…

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Claudia com o peixe

Claudia, demorou a aceitar meu convite de irmos juntas pescar, além do receio por eu ser forasteira, haviam outros elementos que interferiam em nosso encontro, o clima chuvoso, inviabiliza por vezes nossas idas às pedras que ficavam muito escorregadias; as marés, por outras vezes, também nos impediram de ir à pesca, pois naquelas marés os peixes não chegavam.Quando finalmente fomos à pescaria, depois de tantas tentativas de agendamentos com antecedência, a pesca se deu inesperadamente. Claudia me enviou uma mensagem dizendo que estava indo naquele momento e que se eu quisesse poderia acompanhá-la. Assim como a espera, a espontaneidade da ida à pesca, é parte desse modo de vida. Aos poucos Claudia me ensinou que não se marca uma pescaria com data e hora, a pescaria acontece a partir da conjunção de uma série de fatores como o clima, a maré, a disposição dos pescadores, a conjuntura familiar propicia (alguém para cuidar dos filhos, netos e idosos) e a ausência de outros trabalhos remunerados.

Claudia - Pescadora

Pescando nas Pedras

Nos encontramos na entrada da estrada do cemitério por volta das 7 horas da manhã daquele dia, e seguimos o caminho, eu, Claudia, e seus cachorros. Eu não sabia quantas horas permaneceríamos ali, e por mais que eu perguntasse a Claudia sobre as previsões para o dia, depois compreendi que nem mesmo ela poderia me responder. Assim como a ida, o retorno também depende…da maré, do clima, dos peixes....Ela carregava 1 molinete, 1 vara de bambu, uma mochila de pano e uma sacola. Na mochila estavam uma camisa de manga longa com proteção contra raios uv, já muito antiga que ela me contou ter ganhado em um treinamento para pescadores oferecido pelo governo da Bahia; um protetor solar já no fim, que ela mesma ressaltou; uma garrafa de água; e seu celular. Na sacola ela carregava seu samburá, camarões de rio que ela havia pescado para servirem de isca.

Claudia nas pedras

Logo quando começamos a caminhar, ela me perguntou se eu passava pelo cemitério, por que ela não passava por lá, preferia pular as cercas na lateral para poder desviar. Claudia me contou que o ex gerente de um grande empreendimento turístico na região, comprou a área, e proibiu a passagem dos pescadores pelo tradicional caminho até seus pesqueiros, oferecendo como alternativa, o caminho que passa por dentro do cemitério. Ela afirma que tamanha ofensa não é justa e se nega a passar por dentro do cemitério, desrespeitando os mortos e submetendo ela mesma às más energias que estão ali.Os conflitos dos moradores antigos (nativos) da região com empresários que vêm comprando grandes extensões de terras na costa na região já foram anteriormente relatados (Silvera, 2020). E são causados principalmente pelo estabelecimento de limites territoriais e cercas que impedem a passagem dos pescadores por caminhos tradicionalmente percorridos no desenrolar de seus ofícios cotidianos como a pesca, e a colheita de frutas.

Após pularmos as cercas e caminharmos aproximadamente 100m pelo mato, encontramos a trilha que seguia do cemitério, entramos nela e Claudia me chamou a atenção para a beleza da vista que tínhamos dali, realmente era uma paisagem paradisíaca! Ao longo do dia me chamou muitas vezes a atenção para a beleza do lugar, quão fresca era a água que atravessamos, quão azul o mar, a maravilha da vista, a alegria de estar ali, e repetiu algumas vezes:“É duro, mas é maravilhoso! Eu amo isso aqui!”

Descemos pela trilha passando por duas pequenas cachoeiras, as quais Claudia me contou que eram 2 nascentes próximas dali, destacando que era água pura e que muitas pessoas vinham ali beber e lavar roupas. Quando chegamos na praia, Claudia colou as coisas no chão e começou a se arrumar, vestiu a blusa de proteção, passou o protetor solar apenas no rosto me mostrando as manchas que tinha pelo sol.

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Claudia com os netos indo pescar

Ela me convidou então a irmos até as pedras para tentar peixes pequenos com os quais faria iscas para pegar peixes maiores. Me mostrou seu anzol de número 10, que ela chama de anzolzinho e me explicou que servia para pegar Barbudo, Peixe Branco, Morea (...) os quais posteriormente  usaria de isca para pegar:

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“um pampo grande pra nós”

Pampo

Na primeira jogada de anzol, ela já pegou um pequeno peixe, Palabeta, e ficou muito feliz me mostrando sua pescaria. Ao longo do dia, me dei conta do quão importante era para Cláudia ser reconhecida como pescadora, pois ela se reafirmou assim muitas vezes e em geral se contrapondo a muitas marisqueiras “pé enxuto”, se referindo a mulheres que são filiadas a colônia e recebem os benefícios da profissão, mas não sabem pescar.

Claudia não é atualmente “colonizada”, pois como me contou, possuía seu Registro Geral da Pesca, mas, com uma sucessão de desrespeitos e desinformações por parte do Estado e dos representantes da colônia, Claudia perdeu o registro. Agora, está cada vez mais distante de reconquistá-lo, já que depende do pagamento dos atrasados que se acumularam e continuam a se acumular, já que não os consegue pagar. Porém, sua expectativa de reconhecimento como pescadora pelo RGP, não está relacionada ao desejo objetivo de receber os benefícios financeiros da classe, em seu discurso, Claudia manifesta claramente o desejo de ser reconhecida pelo estado, em sua identidade de pescadora. Perder o RGP, não é sobre perder o benefício financeiro, mas sobre perder o reconhecimento do Estado sobre o que constitui sua pessoa.

Claudia - Pescadora/ Olha o peixe que eu peguei

“As marisqueiras pé enxuto tem tudo pago direitinho, todo mês, certinho, sabe porque? Porque não vem pescar, vai trabalhar, aí trabalha em outras coisas, ganha o dinheiro e vai lá e paga a mensalidade dela lá na colônia. Agora eu, que venho todo dia, que alimento meus filhos, meus netos, tudo com peixe, vou pagar como? O peixe que eu pesco aqui, eu como, guardo pra comer outros dias, dou pras minhas filhas pra ajudar elas a dar de comer pros meninos,e o que sobrar eu vendo, mas aí tem que comprar o açúcar, a farinha, sem falar no anzol, a chumbada, agora tem que comprar até a vara, porque o Ibama não deixa mais tirar vara pra pescar, como é que eu vô pagar mensalidade? E ainda aquele monte de atrasado que eles falam lá que eu tenho que pagar?”

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Claudia pescando

Certamente a política de vinculação dos pescadores não condiz com a sua forma de vida, especialmente no que se refere às mulheres que desempenham um tipo de pesca voltada à alimentação familiar, e não à comercialização.

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Em certo momento de nossa pescaria pelas pedras Claudia pegou uma Morêa, e então me contou que quando pegava 1kg delas, já tinha cliente certo em Itacaré. Continuamos caminhando e jogando as linhas no Brejo grande, Buraco João Dias, e outros pesqueiros por entre as pedras.Pegamos nossas bolsas, e caminhamos no outro sentido da praia, subimos uma trilha por cima das pedras, até chegarmos em uma pequena praia, onde estava “seu barraco”. Nos sentamos ali por um instante e conversamos enquanto bebíamos água. Naquele instante eu finalmente a vi totalmente relaxada, apesar do receio inicial comigo, naquele momento, ela se sentiu à vontade para me falar sobre suas opiniões: a criação dos filhos e netos, sua preocupação com o mundo que “anda todo errado”, com a natureza “que está se acabando”, com os maus tratos que sofreu a vida toda e quão grata é à pesca por “tê-la permitido criar seus filhos”.

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Barraco na praia

Claudia me disse que se dependesse apenas dela, ela viveria ali mesmo, naquele pequeno abrigo de palha, e de fato, ali, ela parecia se sentir em casa.O modo de vida pesqueiro, mostra-se uma atividade muito menos produtivista, já que não se trata de pegar o peixe para vender ou comer apenas. Pescar para essas mulheres, representa a saúde mental e física delas, estar em contato com a natureza, em uma atividade que corresponde ao seu ritmo, onde podem estar acompanhadas dos seus familiares, animais ou consigo mesmas.

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“Se não fosse isso aqui, eu já tava morta.”

Cláudia então começou a pegar umas “baratas” para fazer de isca pro Pampo que queria pegar. Amarrou  a Morêa que havia pescado mais cedo em uma pequena vara que estava em seu barraco, com um anzol pequeno na ponta e começou a bater a Morêa no chão. Eu fiquei um pouco confusa, pois pensava que ela queria preservar a Morêa e tentar chegar a um kg para vender à pessoa que ela me disse sempre comprar.

No final do dia, quando íamos pelo caminho de volta, ela cruzou com seu irmão, que depois de um dia inteiro de trabalho “estava indo tentar pegar alguma coisa”. Ele disse a ela que esqueceu os camarões em casa e ela deu a segunda Morêa que havia pegado para ele fazer de isca. Naquele momento, me pareceu claro que o valor dos peixes que ela pega não é comercial, mas a possibilidade de ajudar aos seus, seja alimentando-os ou oferecendo-lhes isca para conseguirem seus próprios peixes.

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“Baratinhas”

Com o passar do tempo e a pescaria sem grandes resultados, ela chamou a atenção para o banco de areia que havia à frente de toda a costa em que estávamos caminhando, realmente notava-se nitidamente uma faixa de areia há cerca de 40 metros da costa. Ela me disse que era culpa do Porto Sul, que antes não era assim, ali haviam muitos mais peixes, porém:

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“Desde que começou com esse negócio aí de Porto Sul, aqui fica tudo assoreado, cheio de areia, aí os peixes nem conseguem chegar. Eles (representantes do governo) falam que não tem nada disso, mas eu pesco aqui a vida toda e te falo que tem sim.”

A incredulidade de Claudia nas Instituições governamentais é embasada em situações como essas em que sua percepção do ambiente não é validada por estas instituições, enquanto validam opiniões e regras que favorecem grandes empreendimentos e empresas em detrimento dos pescadores, e relata:

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 “Hoje em dia, você pode ser preso por uma corda de caranguejo, se você pegar eles no defeso. Mas cê vai ali na pista, a quantidade de guaiamum que tá morrendo atropelado na estrada[construída em cima do mangue] , porque eles assorearam o mangue inteiro, não conta não. Eu falo mesmo, se vier me prender por causa de 8 caranguejos? Eu falo: -Vai prender aqueles povo lá do Porto Sul que tá matando meio mundo de bicho no mangue e ninguém fala nada.”

A revolta de Claudia é a revolta de grande parte da comunidade  nativa da região, que vê seus modos de vida serem proibidos por legislações ambientalistas ao mesmo tempo em que autorizam empreendimentos de impactos irreversíveis na natureza local.Outra observação constante que Claudia fazia era sobre a maré, curiosamente estivemos ali por volta de 8 horas, e a maré não se mexeu, nem subiu, nem desceu, e assim, a água não ficava limpa, boa de pescar. Claudia destacava como a maré não correspondia aos seus conhecimentos, os quais utilizou sua vida inteira de pesca, e eu notava que aquela mudança no mar, certamente causada pelo novo banco de areia, atingia não só sua pesca de forma direta, mas seus conhecimentos tradicionais e sua auto estima como pescadora. Em 8 horas que estivemos por lá, Claudia pegou 2 Palabetas pequenas, 2 Morêas e umas tantas baratas que utilizamos de isca. Ela se mostrou um tanto decepcionada por não conseguir pescar um peixe grande para me mostrar:

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 “Mas tudo bem, outro dia a gente volta, agora você já sabe que eu sei pescar, que eu não sou pé enxuto. Sei botar um anzol, sei os pesqueiro, tem muita gente aí que não sabe disso, mas agora você me diz, eu volto pra casa com esses dois peixinho, pra eu e meu marido comer, tem que ter farinha, porque se não não enche, imagina se eu vou pagar colônia?"

Claudia - Pescadora/ Eu amo a pescaria

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