top of page
Liacy e Miracy

Memória, o feito que conta quem é

Liacy e Miracy são 2 irmãs filhas de Barra Grande. Nascidas e criadas ali, as duas irmãs seguem juntas por toda vida, compartilham o lugar, a família, a pescaria e as memórias. Lia possui 72 anos, mas a jovialidade e a disposição na pesca a fazem parecer bem mais jovem. Aventureira, Lia é a acompanhante de Chica nas pescarias de lancha, que exigem a coragem de entrar no mar aberto. E diz que pega polvo, mas que o que gosta mesmo é ir pescar no mar e pegar Cioba. Lia é uma contadora de histórias, suas falas são sempre acompanhadas de pequenos “causos” que lhe passaram:

 

“Uma vez eu peguei um Robalo que deu 1 kg e 200, só 1, ali no Alto (nome de um recife de corais).”

Desenho 03 - Cioba

O prazer de contar seus feitos como pescadora é notável, a pesca não se trata só de realizar o trabalho para o sustento alimentar da família, nem só de cunho terapêutico/relaxamento, mas sobre o desafio, a conquista. Lia sabe dizer os pesos, os tamanhos e até mesmo lembrar de fatos que aconteceram no dia para comprovarem suas histórias, como a tradição de pescar dourados grandes toda quinta-feira que antecede a sexta-feira santa.

 

“Uma vez eu peguei um dourado de 5 kg, e no outro ano, peguei um de 6 kg.”

O Budião

Lia atualmente é casada com um comerciante da vila, e possui uma vida confortável economicamente. Seus filhos, também comerciantes, são mencionados por ela sempre com muito orgulho de seus empreendimentos, mas não pescam. Ela afirma que não precisa pescar para se alimentar, o faz por diversão. Pega o polvo para seu próprio consumo, ou de seus familiares. Orgulhosa,  menciona que seus netos amam seu polvo de arroz, mas já seu marido gosta da moqueca.

​

Dois de seus netos a acompanham às vezes na pescaria, mas como ela afirma, é raro, já que possuem escola e “as coisas deles” para fazer.

​

Acompanhei-as algumas vezes na pesca de polvo e na pesca de peixes na ponte, mas nunca as encontrei acompanhadas de filhos e /ou netos. Em geral, estão elas, sempre juntas, ou quando uma falta, elas a fazem presente todo o tempo, comentando o motivo da ausência uma e outra vez.

​

Especialmente a pescaria na ponte é um momento de muita conversa e “resenha”, como se costuma falar na Bahia. Enquanto colocam a isca no anzol e a linha na água, elas conversam sobre as famílias, fazem brincadeiras, são cumprimentadas e provocadas pelos que passam em tom de diversão.

Foto 34 - Lia com peixe na ponte.JPG

Lia com o peixe na ponte

Chegam juntas por volta das 16 horas na ponte, com seus samburás e suas varinhas. Primeiro sentam-se na lateral ao longo do píer, uma ao lado da outra, e começam a colocar as iscas nos anzóis e as linhas na água. Tudo é feito com muita simplicidade, não se trata de um momento ritual, ou de necessidade de grande preparação. É algo enraizado em seus cotidianos. Elas se sentam e esperam... Até que algum peixe morda suas iscas, e então puxam suas varinhas.Às vezes ferram o peixe, às vezes não, nos dois casos é comum elas brincarem umas com as outras sobre os peixes que pegaram ou que deixaram de pegar. Também falam sobre a espécie que querem pegar, reclamam quando pescam espécies indesejadas – porque não gostam daquela espécie, ou porque são pequenos demais - e voltam a chamar os peixes específicos que desejam.

Foto 35 - Mira pescando.JPG

Mira pescando

Dona Miracy sempre reclamava dos chicharros que insistiam em morder suas iscas e fugiam sem serem ferrados. Quando os ferrava, colocava em seu samburá e dizia:

​

“Eu não queria você não, mas já que você mordeu minha isca….Agora eu quero é minha Chumberga.”

​

A sensação de um ambiente familiar transborda nesses momentos. Elas trocam ajudas mútuas, seja nos conselhos, nas linhas, anzóis e iscas que compartilham quando falta a alguma delas, ou ainda nos pescados quando a abundância é maior para uma do que para outra.

Foto 36 - Mira caminhando nos corais.JPG

Mira Caminhando nos corais

Na pesca do polvo, não é diferente, quando uma delas tem dificuldade em puxar um polvo de um buraco, outras se juntam para ajudá-la. Certa vez presenciei uma cena em que Miracy depois de ter ferrado um polvo, tinha muita dificuldade em puxá-lo do buraco. O animal é forte, e se prendia às paredes do buraco com suas ventosas, dificultando para a pescadora. É preciso assumir uma postura curvada que é difícil sustentar por muito tempo, e que gera grandes dores lombares. É comum elas reclamarem de dores lombares, mas não associam ao movimento de força com a coluna curvada para retirar o polvo.

Foto 37 - Lia com samburá nos corais.JPG

Lia com samburá nos corais

Neste dia, juntaram-se Liacy e Marlita para ajudar a puxar o polvo de Mira, que saiu aos pedaços. Ao final da empreitada elas não quiseram alguma parte ou retribuição pelo grande esforço que haviam feito, faziam não por esperarem qualquer tipo de compensação, eram orientadas pela solidariedade e espírito de parceria, que permeou todas as pescarias nas quais estive presente com elas. Caminhando pelos corais, as conversas eram menores e mais esporádicas do que na ponte, já que elas se espalhavam no coral e até dividiam-se em diferentes corais para procurarem os polvos. Dona Mira e Dona Lia costumam ficar juntas, nos corais mais próximos. As pescadoras mais jovens como Chica e Loloca caminhavam para os recifes de corais mais distantes do ponto de parada. Mas em geral o movimento de retorno aos quadriciclos era conjunto, quando Dona Mira começava a caminhar em direção aos veículos, eu observava que de longe, já vinham caminhando as outras pescadoras com seus polvos ferrados em seus arames.

Fim de Pesca

Miracy é uma senhora de 74 anos, alegre e que adora conversar. Sempre compartilhando suas receitas, e histórias sobre o passado em que vivia com os pais. Em geral as conversas sobre pesca com Miracy, caminham para lembranças de como sua mãe cozinhava, ou algo que seu pai dizia ou fazia.

 

“Meu pai dizia: - Bote água no fogo que eu vou ali buscar a janta, e quando meu pai voltava era de samburá cheio!”

Mira na ponte

O vínculo afetivo que Dona Mira possui com esse passado familiar é tão forte, que se faz constantemente presente em nossas conversas. Mira é a única pescadora que afirma viver da pesca. Com isso quer dizer que ainda hoje, a pesca é sua fonte de renda principal, e que por isso, precisa dela (e que seja boa) para sobreviver. Mas durante a roda de conversas que fizemos certa vez com as pescadoras, ela relembrou a todas que ali estavam, e afirmavam não viverem da pesca, que no passado, todas foram criadas exclusivamente da pesca, e que a pesca era a garantia alimentar de seus pais e avós. Como ela relembra:

 

“A gente tinha uma casinha na costa, que a gente ia e meu pai dizia: vá minha filha, mas não pegue os grandes não, só os pequenos pra fazer o polvo de currute. A gente nem levava comida, lá mesmo tratava, lá mesmo temperava, cozinhava, fazia um pirãozinho com farinha de mandioca…e Oxente! Era uma vida maravilhosa! Bem melhor que a de hoje!”

Foto Mira “futucando” o buraco do polvo

Mira é chamada de homem pelas outras pescadoras em tom de brincadeira, o que querem dizer é que Mira é tão valente que muitas vezes desempenha papéis “oficialmente masculinos” na pesca. Como quando assumiu a Camboa de seu pai, que apesar de ser trabalho para homens, quando seu pai faleceu, foi ela quem assumiu a manutenção da armadilha. As outras pescadoras a valorizam por isso, e destacam a importância dessa atitude, pois se ela não tivesse assumido naquele momento, a Camboa teria acabado, afirma o grupo. Mas as lembranças desse tempo, nem sempre acionam apenas sentimentos bons, a nostalgia desse passado se confronta com a sensação de um mundo distinto hoje. Com outros valores, a chegada do turismo e da globalização, outras formas de se relacionar economicamente, mudanças climáticas, elas vêem seus modos de vida transformados e saúdam um passado que lhes permitia viver com menos conforto e mais alegria como fala Chica:

 

“Era muito mais dificuldade, hoje a gente tem tudo, mas a vida era bem melhor.” 

 

A sua fala demonstra a preferência dessas mulheres por um estilo de vida menos urbano, e que o acesso a bens materiais promovido pelo capitalismo, não as satisfaz como a convivência familiar, um ritmo de vida mais lento, e a simplicidade.  A fala de Chica demonstra que ter tudo, claramente não é a melhor possibilidade, e Dona Miracy relembra:

 

“Você já pensou, que todo mundo nativo daqui, criou os filhos com a pescaria. Colocava o caçueiro, e de manhã a gente vinha com os cestos, essa camboa aí, dava era mil quilos de peixe.”

Histórias de antigamente

Mira lamenta que seu pai vendeu as terras em que elas cresceram pescando e que esse foi um momento de grande tristeza para ela e as irmãs. Esse tipo de situação é comum em lugares mais isolados que vivem um estilo de vida tradicional, baseado na subsistência familiar e de repente é tomado pelo turismo e consequentemente capitalismo, especulação imobiliária e gentrificação. Quando chega o dinheiro, e assim a necessidade do dele, as terras são vendidas a preços módicos, por famílias que não tem conhecimento monetário e que passam a viver em espaços diferentes dos que estão habituadas. Assim, no caso da família de Mira e Lia, pescadoras de nascença, perderam seu território frente ao mar em que ia pegar seus alimentos frescos na hora de suas refeições, e passaram a adotar um estilo diferente de vida, de estocar alimentos devido a impossibilidade de acesso fácil, e a nova necessidade de vender para fazer dinheiro.

Lia e Miracy
Loloca Bené e Marisa
Chica
Jacyra
Técnicas
Foto 42 - Samburá.JPG
bottom of page